Entre onças, araras e serpentes: a Medicina Veterinária voltada para os animais silvestres

Paixão por silvestres mudou a vida de uma médica-veterinária quando ela era ainda adolescente [...]

Débora Malta


Na terceira matéria da série em homenagem  mês do médico-veterinário, enfocamos a Medicina Veterinária voltada para os Animais Silvestres.

A entrevistada é a médica-veterinária Débora Malta.  Ela tem graduação e mestrado pela Universidade Federal da Bahia. Entrou na Ufba com o firme propósito de cuidar de animais silvestres e quem a convenceu disso foi uma oncinha.

Voluntária, professora,  presidente da Comissão de Animais Silvestres e Meio Ambiente  (CRASMA) do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado da Bahia (CRMV/ BA) ela está construindo uma história pessoal e profissional em defesa dos animais silvestres. Confira:

Sempre quis ser Médica-Veterinária?

Eu sabia que queria trabalhar com animais selvagens, mas eu não sabia ainda se queria ser veterinária ou bióloga, era minha dúvida.

Na minha época ainda tinha vestibular, então, antes de fazer o vestibular, eu ainda estava no terceiro ano, eu fui uns quatro ou cinco domingos, no zoológico [de Salvador]. Eu ia e ficava lá a tarde toda conversando com os estagiários. Não tinha nenhum estagiário de [Medicina] Veterinária. Só tinha estagiários de Biologia.

Eles me explicavam o que o biólogo fazia, o que os estagiários faziam e o que o profissional  de Biologia fazia. Eu perguntei sobre o de  [Medicina] Veterinária. E [eles explicaram que] “tem veterinário aqui também, é ele quem cuida”. E explicaram qual era a função de cada um.

No antepenúltimo domingo [antes do vestibular] saiu no jornal uma foto de um filhote de onça que nasceu lá no zoológico de Salvador e que tinham separado da mãe porque ela estava com comportamento de quem não iria amamentar.  E [a matéria] explicou que o filhote foi levado para a quarentena e estava sendo cuidado por veterinários e biólogos. Então eu fui [ao zoológico para ver o filhote], mas o estagiário falou que não podia ver,  que estava na quarentena. Insisti bastante, “deixa eu ver essa onça pelo amor de Deus”  mas ele não deixou. No domingo seguinte eu fui de novo e insisti com outros estagiários.

Pedi novamente  [aos estagiários]  e quando eu subi para a parte onde tem as serpentes, [um estagiário] estava dentro da quarentena e me chamou. Eu entrei na ponte e ele disse para eu ficar onde estava. Então ele  permitiu que eu visse a oncinha no colo dele e pegasse nela.  Ave Maria… foi naquele momento ali que eu tive certeza que iria trabalhar com esse bichos.

Graduação

Eu já tinha avaliado a grade curricular das disciplinas e na Biologia tinha umas três ou quatro botânicas, disciplinas relacionadas a plantas, então eu decidi fazer Veterinária.

Fiz vestibular para Medicina Veterinária na Ufba e para Medicina na Bahiana, pelos meus pais, eles queriam que eu fizesse Medicina, mas meu foco era Veterinária e passei na Ufba em 1995.2.

Entre 1996-1997 já fui estagiar no zoológico.

Me encontrei, confirmei que eu entrei  para isso e não larguei.

Na época não tinha nenhuma disciplina de Animais Silvestres na Ufba e escutei professores dizendo que eu estava no curso errado, que tinha de fazer Biologia e não Veterinária. E eu bati o pé, fazia nadaaa.

Os animais precisam de alguém que cuide deles  e não é o biólogo. Ficaram me olhando meio torto e não desisti.

Na faculdade passei por umas três greves e em todas eu saia para fazer estágios. O último deles foi no zoológico do Rio de Janeiro. Fui com previsão de ficar por um mês, fiquei dois meses e um pouquinho.

Eu  fiz oito anos de faculdade, porque eu queria aproveitar BEM o meu período de estudante e sabia que depois que eu saísse da faculdade não ia poder mais estagiar e só tinha como referencial os veterinários do zoológico, Gérson Norberto e Cláudio Lyra.

Precisava participar de congressos como estudante e me formei no limite da Ufba, porque não teve jeito, se tivesse eu ainda ficaria mais tempo…

Como foi sua experiência social  na faculdade?

Tenho amizades que ainda mantenho hoje, mas nunca fui de ficar na faculdade, terminava minha disciplina saia de uma sala e ia para outra e quando terminava ia embora.

E na Ufba a gente pega disciplinas soltas (…) é difícil formar com a mesma turma que entrou e todo mundo se formou e eu fiquei. Mas mantenho algumas amizades da época da faculdade.

Docência Superior

Não entrei com essa intenção, mas ainda durante a graduação me chamaram para substituir uma professora na rede estadual, ensino médio. Fui e me apaixonei e fiquei uns quatros anos como substituta, saia de  uma escola e ia para outra.

Formei e na minha apresentação de monografia (sobre hematologia de papagaios), a professora Consuêlo (que não tinha sido minha professora) assistiu e gostou e perguntou se eu não queria fazer mestrado com ela.

Comecei a dar plantão em clínica,  com a possibilidade de começar a atender animais silvestres. Mas no terceiro ou quarto plantão, saí chorando, sabia que não queria aquilo, mundo de clínica, tutores…  eu  não queria.

Nisso, recebi uma ligação do coordenador do Centro Nacional de Pesquisa para a Conservação de Aves Silvestres  (Cemave), na época do Ibama, hoje ICMBio. Nem lembrava que eu tinha mandado meu currículo para coordenar o projeto de Arara-Azul-de-lear. Perguntou se eu ainda tinha interesse, respondi que sim e falou para ir para João Pessoa na semana seguinte para começar o treinamento e ser enviada para o Raso da Catarina, na Bahia. Foi tudo the flash.

Lá eu fiquei por um ano e um pouquinho, coordenando o projeto, trabalhando com as Arara-Azul-de-lear no Raso. Monitorava, fazia censo, monitorava os ninhos, escrevia várias pesquisas de respostas de resultados, de hipóteses, tinha vários projetos, abri seleção para estagiários (que não tinha) e na época de reprodução veio gente de vários estados. Terminou meu contrato e voltei para Salvador, procurei a professora Consuêlo, fiz a seleção de mestrado, passei e fizemos pesquisas sobre  “Parâmetros hematológicos e bioquímicos de Araras”, coletando sangue das Araras do Planeta Zoo (um zoológico particular que hoje não existe mais) e do zoológico de Salvador.

No projeto da Arara-Azul-de-Lear eu me encontrei total, eu trabalhava com educação ambiental em escolas, fazia atividades como desenhos, teatro, falava sobre as araras, sobre o habitat, sobre  a caatinga, fazia brincadeiras e fui me apaixonando cada vez mais pelo ensino.

Então, ao fazer o mestrado, já fui nessa intenção, de ser professora de faculdade e de incluir uma disciplina de animais silvestres na graduação de Medicina Veterinária da Ufba . Acho que no meio do mestrado, a gente conseguiu incluir a disciplina, porque durante a graduação  já tinha um grupo de estudos (formado por Débora, Leane, Paulo Baiano, Oberdan e alguns outros estudantes) de silvestres, o GEASE. Sempre com o apoio do Conselho (CRMV/BA), de Ana Elisa [a ex-presidente Ana Elisa Almeida] fizemos simpósios e outras atividades. A disciplina era ministrada pelo professor Paulo César Maia, mas os  membros do Gease se revezavam  nas aulas como voluntários. Fiquei ministrando aulas por uns quatro anos.

Terminei o mestrado, apresentei minha dissertação grávida e  um ano após o nascimento do bebê, voltei a dar aulas, agora na FTC, em Feira de Santana, em 2010.

Educação a Distância

Quando eu me formei, eu fiz a prova do Conselho e acho que deveria voltar. Com essa quantidade de cursos, eu observo que algumas faculdades não tem um quadro bom de professores, focam mais na quantidade de alunos do que na qualidade de ensino,  e termina virando uma fábrica de formados e não de profissionais.

Não vejo mais aquele respeito pelo professor. Não enxergam o professor como aquele profissional que trabalha muito, que estuda muito, que batalhou muito para estar ali.

Não tem lógica nenhuma você fazer uma faculdade que vai tratar de vidas, de seres vivos, e ser a distancia, EAD. Se de uma faculdade presencial você já sai sem a devida experiência, imagine em uma EAD, aliás, precisa obrigatoriamente da experiência, isso deveria ser mais cobrado,  as horas práticas. Uma coisa é você ficar olhando, outra coisa é você pegar a vacina e ter que aplicar no animal.

Em uma das minhas disciplinas eu sempre incentivo os alunos a coletarem sangue , claro que não dá pra todos, nem todos tem afinidade e técnica, mas já é um contato maior e direto com o animal , saindo da sala de aula

Como ele vai aprender a coletar sangue da jugular de um cavalo, se ele nunca coletou, ou nunca viu de perto?

Se não fosse meu estagio em clínica eu sairia da faculdade sem saber aplicar vacina. Não tem espaço, tempo na faculdade para isso, daí a necessidade do estágio obrigatório. Não tem nem o que dizer sobre a Veterinária EAD. Veterinária é uma formação 100% prática, não dá para ficar na teoria.

Alunos que ficam

São vários discentes que são despertados para a área de Silvestres, alguns pedem que eu seja orientadora de seus trabalhos de conclusão de curso. Inclusive hoje uma estudante que não foi minha aluna, mas me conheceu em uma palestra, trabalha comigo na ONG de proteção aos animais silvestres, nas FPIs [Fiscalização Preventiva Integrada, criada pelo Ministério Público da Bahia].

Atividades hoje

Leciono Laboratório Clínico,  Doença das aves.  e Animais silvestres em uma faculdade e em  outra faculdade Clínica de aves e animais   silvestres.  Sempre com selvagens.

Antes eu queria fazer um concurso para o IBAMA, INEMA ou ICMBio, mas hoje eu já não tenho mais essa vontade, pois há uns dois anos estou percebendo que se eu fosse de alguma instituição dessa, a  minha contribuição ia ser menor. Hoje a contribuição de perícia, de consultoria, para o Ministério Público e orgãos ambientais  é até maior, porque eu não preciso seguir algumas ´regras´.

Sinto que posso ir lá e falar, vou e lá e posso mostrar o que está errado, e qual a melhor forma de fazer, posso exercer meu papel sem ter  obrigatoriamente que seguir regras institucionais. Eu  vejo que servidores dos órgãos ambientais ficam limitados a exercer o papel deles e eu sinto como se eu tivesse a capacidade de fazer o que eles queriam, mas não podem por estarem nesses órgãos.

Acho que minha contribuição é maior como ONG.

Além do trabalho que eu faço, o que me realiza é que as instituições parceiras reconhecem e valorizam esse trabalho e isso me enche de orgulho, me faz trabalhar com mais afinco. Eu tenho que mostrar realmente que sei trabalhar. Óbvio que não trabalho sozinha, essa área é multidisciplinar,  precisamos de outros profissionais para o trabalho sair bem feito,  como biólogos e zootecnistas, por exemplo.  Mas existe o reconhecimento, a confiança. Quando me perguntam, “Doutora este animal está sob maus-tratos?” e pedem para eu fazer um laudo comprovando que aquele animal está sofrendo maus-tratos, sou acatada, sou ouvida, isso é muito importante, me realiza, realmente.

Somos colaboradores das FPIs e as instituições nos ouvem, nos perguntam, solicitam, têm o respeito, isso é muito importante, é muito bom. Temos a garantia que não estamos ali para perder tempo.

Atuação com o Conselho

Acho que eu já era da comissão do Conselho [Crasma], antes mesmo dela existir. Sempre estive pedindo apoio a Ana Elisa para realizar os Simpósios para mostrar aos veterinários que o lugar é deles também. Eu não tive isso durante a graduação e quero mostrar que a área de animais selvagens precisa de médico-veterinário. Hoje a gente tem mais de dez veterinários de selvagens na Bahia, isso me enche de orgulho, quase todos foram ´crias´ do GEASE.

A existência dos Conselhos é fundamental, indispensável. Hoje, por exemplo, temos alguns questionamentos sobre valores cobrados,  honorários em trabalhos de licenciamento e resgate de fauna, estamos enquanto comissão ,  elaborando propostas para alteração ou criação de leis que regulamentem de forma concreta e que os órgãos ambientais possam exigir das empresas contratantes os profissionais ´in loco´ , e pensando numa forma de exigir experiência porque ainda não temos esta especialidade.

A gente vê hoje, profissionais que nunca trabalharam com silvestres receberem proposta e aceitarem.  Nunca manejaram uma serpente na vida, são chamados e pra não perder oportunidade ,  vão.  Quem perde com isso ?  Os animais que não terão o atendimento necessário, o meio ambiente e o os médicos- veterinários ‘especializados ‘  nessa área, que deveriam estar lá.

Mas não consigo imaginar uma categoria sem o Conselho.  Tendo o Conselho, já acontece tanto absurdo, tanto charlatão.  Mas o charlatanismo tem que se tornar crime e os conselhos precisam ter maior autonomia e serem fortalecidos.

Eu não consigo me enxergar enquanto Médica Veterinária,  sem o meu Conselho.

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